ALENTEJO
Folheia-se o caderno e eis o sul
E o sul é a palavra. E a palavra
Desdobra-se
No espaço com suas letras de
Solstício e de solfejo
Além de ti
Além do Tejo
Verás o rio e talvez o azul
Não o de Mallarmé: soma de branco e de vazio
Mas aquela grande linha onde o abstracto
Começa lentamente a ser o
Sul
Outro é o tempo
Outra a medida
Tão grande a página
Tão curta a escrita
Entre o achigã e a perdiz
Entre chaparro e choupo
Tanto país
E tão pouco
Solidão é companheira
E de senhor são seus modos
Rei do céu de todos
E de chão nenhum
À sombra de uma azinheira
Há sempre sombra para mais um
Na brancura da cal o traço azul
Alentejo é a última utopia
Todas as aves partem para o sul
Todas as aves: como a poesia
Manuel Alegre (Alentejo e ninguém)
Porque o merece, transcrevo as palavras proferidas por MANUEL ALEGRE, quando da entrega do Prémio LEYA - 2009 a João Paulo Borges Coelho.
Transcrito de: www.manuelalegre.com
O Presidente Samora Machel, pouco antes da sua visita a Portugal, disse a um jornalista português: "Camões não é só vosso, Camões também é nosso". Esta frase, que profundamente sensibilizou o povo português, não foi só uma homenagem ao poeta que na Ilha de Moçambique acabou de escrever o poema que é, de certo modo, um acto de fundação poética de Portugal. O que o Presidente Samora Machel pretendeu significar foi que a língua portuguesa tinha deixado de ser língua de ocupação para passar a ser uma língua de liberdade, de independência e de partilha. Ou como diria Miguel Torga: "um traço de união".
Estranha contradição e, ao mesmo tempo, soberbo privilégio de uma língua que tendo sido a do sistema colonial, foi também a língua em que os povos começaram a pensar e procurar poética e politicamente as suas raízes e a sua identidade. Nos poemas, nas revistas, nos textos fundadores, mais tarde na luta de libertação e finalmente na proclamação da independência.
Língua de luta e poesia. Angola independente já estava nos poemas e nos textos em que Agostinho Neto, Viriato da Cruz e Mário de Andrade afirmaram a sua angolanidade e proclamaram: "Vamos redescobrir Angola, vamos a ser nós mesmos". E o mesmo aconteceu em Moçambique com os poemas de Craveirinha, Marcelino dos Santos, Jorge Rebelo e as palavras inspiradas e proféticas de Samora Machel. E também em S. Tomé e Príncipe, com os poemas de Alda Espírito Santo. E na Guiné e Cabo Verde com a escrita e a palavra de Amílcar Cabral. E depois em Timor com os poemas e as armas de Xanana Gusmão. As armas e a poesia andaram juntas. Na mesma língua.
Já no século XIX Almeida Garrett tinha escrito um ode que saudava a independência do Brasil, sublinhando que ela acrescentava a "lusa liberdade". E Portugal existiu sempre naquela "lusitana antiga liberdade" de que falava Camões e que os seus poetas sempre cantaram mesmo quando o povo português era também um povo oprimido.
Língua de múltiplas resistências. Língua de ocupação colonial mas também de libertação nacional. Língua de ditadura sobre o povo português mas também de liberdade resgatada a 25 de Abril de 1974.
Língua de fraternidade entre os combatentes de um e outro lado. E entre resistentes que se encontraram nas mesmas prisões e nos mesmos exílios. Língua dos nossos encontros, desencontros e reencontros. E hoje, sobretudo, língua de amizade, de construção e de futuro.
Esta é a língua que o Prémio Leya pretende divulgar e celebrar.
Como Presidente do Júri, e também como escritor português, é para mim uma honra e um motivo de alegria estar aqui a participar nesta celebração simbólica com o Presidente Armando Guebuza, também ele um confrade da escrita e com o Primeiro Ministro José Sócrates, com quem às vezes converso sobre o papel da língua portuguesa e a necessidade de a trazermos para a linha da frente da acção política na cena internacional.
Porque esta é uma arma que nós temos: a língua como instrumento de cultura, de partilha e desenvolvimento. E como factor de unidade e afirmação internacional da Comunidade dos Povos de Língua Portuguesa. Temos uma das línguas mais faladas do mundo. É uma grande riqueza para quem não é rico. E se as relações económicas têm cada vez mais um papel essencial, não esquecemos que a língua e a cultura é que fazem a alma de uma nação.
O Prémio Leya de 2009 foi atribuído ao escritor moçambicano João Paulo Borges Coelho pelo seu romance "O Olho de Hertzog", um livro surpreendente que vem enriquecer a literatura de língua portuguesa. Pela originalidade da narrativa, que nos restitui, com grande mestria, esta velha cidade e um contexto histórico em que se conjugam os combates das tropas alemãs contra as tropas portuguesas e inglesas na Primeira Guerra Mundial, o confronto entre africânderes e ingleses, a emigração moçambicana para a África do Sul, as primeiras greves dos trabalhadores africanos, a riquíssima personagem do jornalista João Albasini, pioneiro do nacionalismo moçambicano, e a busca do Olho de Hertzog, que é uma metáfora da demanda do destino individual e colectivo.
Em nome do júri, quero felicitar João Paulo Borges Coelho e agradecer-lhe a qualidade da sua escrita e a beleza de um romance que nos inquieta, nos reconforta e nos faz acompanhá-lo na procura do mistério do ser que é, ao fim e ao cabo, o próprio mistério de "O Olho de Hertzog".
Manuel Alegre
Maputo, 4 de Março de 2009
Gostaria de abordar este assunto, só pelo prémio em si e não pelo envolvimento que tal gerou.
Refiro-me ao,"PRÉMIO LEYA - 2009"
Como a notícia informa, o prémio foi ganho por João Paulo Borges Coelho, natural do Porto, mas que, desde muito novo, escolheu Moçambique para viver, sendo Professor da Universidade Eduardo Mondlane.
Nada mais que uma notícia de índole cultural o que muito me agradaria se, não houvesse outros protagonistas.
Um, com toda a justificação pois como Presidente do Juri que atribuíu o prémio, teria todo o direito para lá se deslocar e fazer a entrega do galardão, refiro-me a Manuel Alegre.
Outro, José Sócrates, que, aproveitando-se da sua posição, dominante, convida Manuel Alegre a integrar a sua comitiva, numa visita de estado a Moçambique, faz declarações frizando que a participação de Manuel Alegre, na comitiva,nada tem a ver com a sua intenção de entrar na corrida eleitoral para a Presidência da República, mas sim para fazer a entrega de um prémio, do qual era Presidente do Juri.
Lendo a notícia, verifica-se que quem vai fazer a entrega do prémio é o Primeiro Ministro de Portugal, perante isto, como ficamos?
Não será isto passível de "outras" interpretações?
Já passaram as eleições.
Livres, dizem os políticos, se bem que, para mim, que nasci, cresci e me fiz homem, num outro tempo, a "liberdade" de que estes falam, não é a mesma pela qual eu sonhei e lutei!
Daí que me tenha recordado do Manuel Alegre desse tempo, combativo e actuante, e por isso este poema de hoje, para que, os que o lerem, se não esqueçam do que foi o nosso passado recente.
Direi de meu tempo que havia um S
havia uma sombra e um silêncio
havia um S de sigla e de suspeita
com suas seitas e seus sicários.
Não sei se signo não sei se sina
não sei se simplesmente sujo.
Ou só servil. Ou só sevícia.
Havia um S de Saturno
havia um susto
havia um S de soturno
sobre um S de sol.
De meu tempo direi
que havia um S
de sepulcro.
Sentinela. Sentinelas.
Ou talvez selva. Talvez serpente.
S de sebo e de sebeta: seco seco.
E também senão. E também senil.
Direi de meu tempo
que havia um S
sem sentido.
E também Setembro. E também solstício.
Saga e safra.
Ou talvez semente. Ou talvez segredo.
Havia um S de sal e sílex
havia um silvo
Havia um sílaba ciciada.
E também o sonho: entre suar e ser.
(Como um soluço como um soluço.)
De meu tempo direi
que havia um S
de sol e som.
Havia Setembro e um assobio
Contra um S de sombra e de silêncio.
Manuel Alegre
Aproximam-se eleições.
Livres, dizem os políticos, se bem que, para mim, que nasci cresci e me fiz homem, num outro tempo, a "liberdade" de que estes falam, não é a mesma pela qual eu sonhei e lutei
Daí que me tenha recordado do Manuel Alegre, combativo e actuante, desse tempo e, por isso este poema de hoje, para que, aqueles que o lerem, se não esqueçam do que foi o nosso passado recente.
S (ésse) - 18 de Janeiro de 1974
Direi de meu tempo que havia um S
havia uma sombra e um silêncio
havia um S de sigla e de suspeita
com suas seitas e seus sicários.
Não sei se signo não sei se sina
não sei se simplesmente sujo.
Ou só servil. Ou só sevícia.
Havia um S de Saturno
havia um susto
havia um S de soturno
sobre um S de sol.
De meu tempo direi
que havia um S
de sepulcro.
Sentinela. Sentinelas.
Ou talvez selva. Talvez serpente.
S de sebo e de sebeta: seco seco.
E também senão. E também senil.
Direi de meu tempo
que havia um S
sem sentido.
E também Setembro. E também solstício.
Saga e safra.
Ou talvez semente. Ou talvez segredo.
Havia um S de sal e sílex
havia um silvo
Havia um sílaba ciciada.
E também o sonho: entre suar e ser.
(Como um soluço como um soluço.)
De meu tempo direi
que havia um S
de sol e som.
Havia Setembro e um assobio
Contra um S de sombra e de silêncio.
Manuel Alegre
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