Uma canção, um autor, dois interpretes.
Sei que estou a escrever no limbo deste dia. De qualquer forma, aqu nos Açores é menos uma hora que no continente, razão porque ainda estou a tempo de dizer o porquê de aqui estar.
Foi à 23 anos, tinha sabido da morte do Zeca e preparávamos a ida para Setubal, onde iria decorrer o funeral, a 24. O que essas horas representaram, ainda hoje não consigo verbalizar, razão porque vou aqui deixar o relato da notícia.
José Afonso morreu no dia 23 de Fevereiro de 1987, no Hospital de Setúbal, às 3 horas da madrugada, vítima de esclerose lateral amiotrófica, diagnosticada em 1982. O funeral realizou-se no dia seguinte, com mais de 30 mil pessoas, da Escola Secundária de S. Julião para o cemitério da Senhora da Piedade, em Setúbal, onde a urna foi depositada às 17h30 na sepultura 1606 do quadro 19. O funeral demorou duas horas a percorrer 1300 metros. Envolvida por um pano vermelho sem qualquer símbolo, como pedira, a urna foi transportada, entre outros, por Sérgio Godinho, Júlio Pereira, José Mário Branco, Luís Cília, Francisco Fanhais.
Deixo agora algumas reflexões que o Zeca nos legou, importantes neste momento da vida portuguesa
Azeitão 1979-1987
"Curioso é que nós passamos 40 ou 50 anos de uma vida a fazer determinadas coisas e um dia mais ou menos de repente, sem que renunciemos a nada do que fizemos, apercebemo-nos de que tudo deveria ter sido diferente.
É apenas uma vaga sensação que se instala, sem que saibamos defini-la muito bem.
No fundo sou muito mais contraditório e supersticioso do que quis admitir ao longo dos anos."
"Eu sempre disse que a música é comprometida quando o músico, como cidadão é um homem comprometido. Não é o produto saído desse cantor que define o compromisso mas o conjunto de circunstâncias que o envolve com o momento histórico e político que se vive e as pessoas com quem ele priva e com quem ele canta.
"Não me arrependo de nada do que fiz. Mais: eu sou aquilo que fiz. Embora com reservas acreditava o suficiente no que estava a fazer, e isso é o que fica. Quando as pessoas param há como que um pacto implícito com o inimigo, tanto no campo político como no campo estético e cultural. E, por vezes, o inimigo somos nós próprios, a nossa própria consciência e os alibis de que nos servimos para justificar a modorra e o abandono dos campos de luta."
" Admito que a revolução seja uma utopia, mas no meu dia a dia procuro comportar-me como se ela fosse tangível. Continuo a pensar que devemos lutar onde exista opressão, seja a que nível for."
Esta hoje, é sem palavras!
Música: José Manuel Cerqueira Afonso dos Santos (1929-1987)
Letra: Reinaldo Edgar de Azevedo e Silva Ferreira (1922-1959)
Menina dos Olhos Tristes,
O que tanto a faz chorar?
O soldadinho não volta
Do outro lado do mar.
Senhora de olhos cansados,
Porque a fatiga o tear?
O soldadinho não volta
Do outro lado do mar.
Vamos, senhor pensativo,
Olhe o cachimbo a apagar,
O soldadinho não volta
Do outro lado do mar.
Anda bem triste um amigo,
Uma carta o fez chorar.
O soldadinho não volta
Do outro lado do mar.
A Lua que é viajante,
É que nos pode informar
O soldadinho já volta
Do outro lado do mar.
O soldadinho já volta,
Está quase mesmo a chegar.
Vem numa caixa de pinho.
Desta vez o soldadinho
Nunca mais se faz ao mar.
Hoje, uma fusão feliz.
A voz do Zeca Afonso e uma música tradicional dos Açores.
Ao reouvir o discurso de Alípio de Freitas, numa das inúmeras comemorações que assinalaram, em 2007, o vigésimo aniversário da sua morte, e, como eu, fui um dos muitos, que estivemos em Setúbal, no seu funeral, não posso deixar de aqui, passados dois anos relembrar, este tão importante, como necessário, testemunho.
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