Por M.Margarida Pereira-Müller
A.A. Nº 244/1967
"O portal da Internet sobre Glória de Sant'Anna começa com uma pergunta: "Já alguma vez arrancou uma planta útil da terra? Não o faça. Eu sei o que sente uma planta arrancada sem culpa do seu chão". (do Livro Amaranto). Que mulher é esta que sente com as plantas?
" Eu naveguei pelo interior de um longo rio humano
de tempos diversos onde também há sangue vegetal,
buscando o que acabei por encontrar - a imensa
angústia que se reparte.
Sobre isso escrevo.
Mas cuidado: a música da palavra é um casulo de
seda. Só dobando-o com olhos atentos se chega à
verdade - a solidão ansiosa e disponível.
No entanto, que cada um faça a sua leitura."
É este o texto que está na capa do "Amaranto" e depois repetido, por sugestão da editora moçambicana Ndjira, na capa do "Solamplo". Glória de Sant'Anna não se considera uma mulher "extremamente triste e melancólica", mas sim, atenta às angústias do mundo. O que não exclui momentos de alegria e felicidade.
Após o curso Complementar de Letras no colégio, para onde entrou com dez anos e onde colheu "conhecimento intelectual, disciplina, camaradagem e também sentido de honra", ou seja, como ela própria diz, "o prolongamento do que tinha em casa", fez "Pedagógicas e outros exames que me deram acesso ao ensino secundário" com o intuito de seguir a carreira docente. Glória sente-se professora por vocação. "Eu fui professora do secundário - letras - português - inglês e história, durante vários anos. O contacto diário com aqueles jovens, era um forte elo de conhecimento mútuo e de partilha".
Casou em 1949 e, dois anos depois, partiu para Moçambique, para em Nampula. Em 1953 mudou-se para Porto Amélia (hoje Pemba), onde permaneceu, frente à vasta baía, até 1972. Passou os dois últimos anos em Moçambique em Vila Pery (hoje Chimoio). Para muitos críticos literários, entre eles Carmen Lúcia Tindó Ribeiro Secco, este foi o seu primeiro exílio. Glória não vê esta partida porém como exílio. "Ir para Moçambique não foi um exílio no sentido de punição. Foi a busca de novos lugares para iniciar o lado profissional e de realização de ambos - de meu marido e meu".
Viver em Moçambique deu-lhe tudo o que a vida poderia oferecer: "seis filhos. E todos eles eram conscientes dos momentos que se atravessavam lá. A intensidade dos factos, as justiças e injustiças. A amizade plena", diz-nos Glória. Sentiu que tinha uma missão - "Nós éramos dos que estavam ali para viver, e transmitir o que sabíamos de útil".
Se bem que tenha começado a escrever logo em pequena, foi em Moçambique que publicou as suas primeira obras, a começar com "Distância" em 1951. E são as gentes e as paisagens moçambicanas que a inspiram. "A minha "musa inspiradora" ( e não sei porquê lembrei-me dos estudos da literatura dos clássicos ), eram as gentes em que eu estava inserida como povo. O mar...bem. O Atlântico é aquela base de sustentação das raízes lusitanas - navegações e força dos descobrimentos. O Índico, é aquela base de navigabilidade pelo sonho e pela descoberta. Pela certeza - e volto a repetir - de ser útil numa amplitude maior."
Senão vejamos:
"Negrinha faceira,
dentro da água cálida,
quem olhará
tua graça?
Ou quem verá teu riso
esparso
entre uma onda translúcida
e um sargaço?
(...)
Os teus pés estão sobre os búzios claros
e vazios,
e há música e sol
em teus ouvidos.
Mas quem passa, deixando pegadas na areia,
não olha para ti, negrinha faceira.
( Amaranto, 1988, p.62 )
Paralelamente à escrita e à docência, Glória de Sant'Anna colaborou com diversos jornais (Diário Popular, Guardian (Lourenço Marques), Itinerário (Lourenço Marques) Diário de Moçambique (Beira), Notícias (Lourenço Marques), Tribuna (Lourenço Marques), Sul (Brasil), Caliban (Lourenço Marques) e Colóquio Letras da Gulbenkian) e com a rádio durante muitos anos - "Esse era "o meu largo espaço" e outro meio de transmissão de conhecimentos por vezes com muito peso de carácter social".
Em 1961, e apesar de ser considerada uma escritora moçambicana, ganhou o Prémio para o "Livro de Água", o que lhe deu um certo contentamento - "Ser considerada o melhor poeta do ano, que era o que este prémio contemplava, é agradável. Mas não me deixou adormecer sobre os "louros da glória", passe o trocadilho. A intenção da atribuição desse prémio (ainda que o livro possa valer literariamente) era muito mais a de criar liames com as colónias, do que outra coisa."
1961 foi também o ano do início da guerra colonial. Uma guerra é sempre uma situação difícil, especialmente para as pessoas de grande sensibilidade - "As guerras só trazem mortos estropiados e mágoas". Escreve Carmen Secco: "Afirmando-se por um ethos existencial e humano, a poética de Glória, com imensa sensibilidade e delicadeza de sentimentos, também critica os preconceitos raciais presentes em Moçambique; só que o faz de forma suave, velada e subtil".
No poema Sexto do livro Cancioneiro Incompleto ( temas da guerra em Moçambique , 1961 - 1971), Glória condena a violência que destruiu os macondes, cujas esculturas celebra :
"(...)
( cada figura crescia de suas mãos negras
como se brotasse da sua própria fina pele
solta para a claridade e portadora
de igual agreste impulso
e em seu rosto
e em suas pupilas alagadas
era o mesmo secreto tempo de amar )
Hoje o pesado e oculto pau preto
jaz dentro da ausência
pleno de irreconhecíveis figuras
que perpassam iguais às da nossa memória(...)
(Amaranto, 1988, p. 97 )
À guerra colonial, seguiu-se a independência que, para Glória "foi a consequência que tinha que ser e com a qual aliás concordo. Só que os processos usados não foram certos". À independência segue-se o regresso à metrópole - esse, sim, um verdadeira exílio, "uma punição por ter voltado de lá e ter ficado simplesmente por razões de família que não tinham nada a ver com o tempo político que se atravessava. Aí, senti-me a tal planta útil arrancada do seu chão. Aquele chão onde ficaram enterradas as minhas placentas".
Glória tentou encontrar o rumo à sua vida. Durante quatro anos nada escreve. "Em Portugal, de Norte para Sul e do Sul para Norte, entre Ovar e o Algarve, tentando reencontrar o rumo que não havia (o mar, que é bom "porque é concreto", ficara para trás), Glória de Sant'Anna foi sobrevivendo ao rés de um desespero nem sempre inteiramente dominado" - é assim que Eugénio Lisboa descreve esse período da vida de Glória.
Mas com a fixação da residência perto de Ovar (perto do mar...), Glória parece reencontrar a paz de espírito e, com ela, volta a vontade de escrever. A escrita faz parte do seu dia a dia. Mesmo actualmente, como aposentada, e repartindo o tempo pela casa e pela família, continua a escrever. É que "escrever é como respirar".
Caixa
A obra publicada de Glória de Sant'Anna
· Distância (1951)
· Música Ausente (1954)
· Livro de Água (1961)
· Poemas do Tempo Agreste (1964)
· Um Denso Azul Silêncio (1965)
· Desde que o Mundo (1972)
· Do Tempo Inútil (1975)
· Amaranto (1988) (que inclui 4 livros inéditos: A Escuna Angra (1966-68); Cancioneiro Incompleto (temas de guerra em Moçambique, 1961-71); Gritoacanto (1970-74 e cantares de Interpretação (1968-73)
· Não Eram Aves Marinhas (1988)
· Zum-Zum (1996)
· Solamplo (2000)
· O pelicano velho (2003)
· Ao Ritmo da Memória (2003)
Algumas referências à obra de Glória de Sant'Anna:
1. Lisboa, Eugénio; Glória de Sant'Anna: How purity can also be commitment, Santa Barbara Portuguese Studies, 1994; 4: 207-219.
2. Vieira, Vergílio Alberto; Glória de Sant'Ana, Letras & Letras (Porto), 1990 Dec. 5; 4 (36): 9.
3. Ferreira, Manuel; ... Porque Infinita E a Bondade Divina!, Jornal de Letras, Artes & Ideias (Lisbon), 1990 July 24-30; 10 (420): 13.
4. Lisboa, Eugénio; Glória de Sant'Anna: O Silêncio Intimo das Coisas, Prelo: Rev. da Imprensa Nacional (Lisbon), 1984 Oct.-Dec.; 5: 93-100.
Há também estudos feitos à obra de Glória de Sant'Anna por :
João Gaspar Simões (Lisboa)
Fernanda e Matteo Angius (França)
Fernando Ferreira de Luanda (Brasil)
Maria Lúcia Lepecki (Universidade de Lisboa)
Michel Laban (Universidade Sorbonne)
Revista Brotéria (Lisboa)
José Lois Garcia (Barcelona)
Marie Claire Vremont (Bruxelas)
Almerindo Lobo (Moçambique)
René Pélissier (França)".
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