BICHO DA TERRA
É quando estás de joelhos
que és toda bicho da Terra
toda fulgente de pêlos
toda brotada das trevas
toda pesada nos beiços
de um barro que nunca seca
nem no cântico dos seios
nem no soluço das paernas
toda raízes nos dedos
nas unhas toda silvestre
nos olhos toda nascente
no ventre toda floresta
em tudo toda segredo
se de joelhos me entregas
todos os frutos da Terra
David Mourão-Ferreira
De: ANTÓNIO RAMOS ROSA, in "Não posso adiar o coração"
MONÓLOGO
Perdi a infância e as grandes horas
e procuro numa árvore não sei que intimidade
como se um sol para as mãos nascesse deste olhar
mas a inocência é rápida como o brilho
silênciosa
e existe em si mesma.
Uma forma, sim, sempre silenciosa
dia a dia nascida da surpresa e constância
dia a dia nascida da inocência, mas
como fugir a esta inútil presença?
A minha homenagem ao António Praia, que decidiu partir, enquanto dormia.
Certamente este poema seria facilmente subscrito por ele daí, aqui o deixar.
Quando vier a Primavera,
Se eu já estiver morto.
As flores florirão da mesma maneira
E as árvores não serão menos verdes que na Primavera passada.
A realidade não precisa de mim.
Sinto uma alegria enorme
Ao pensar que a minha morte não tem importância nenhuma.
Se soubesse que amanhã morria
E a Primavera era depois de amanhã,
Morreria contente, porque ela era depois de amanhã.
Se esse é o tempo, quando havia ela de vir senão no seu tempo?
Gosto que tudo seja real e que tudo esteja certo;
E gosto porque assim seria, mesmo que eu não gostasse.
Por isso, se morrer agora, morro contente,
Porque tudo é real e tudo está certo.
Podem rezar latim sobre o meu caixão se quiserem.
Se quiserem, podem dançar e cantar à roda dele.
Não tenho preferências para quando já não puder ter preferências.
E quando for, quando for, é que será o que é.
Alberto Caeiro
Voltei!!!
Veremos se a inspiração e o tempo, disponível, me vão permitir uma maior e mais eficaz assiduidade.
MAIS VALE PREVENIR
O ditador estava satisfeito.
O dia tinha-lhe corrido bem.
Mandara fuzilar dezoito opositores, espancar sete jornalistas,
prender quinze intelectuais e expulsar quatro diplomatas
estrangeiros.
Não há dúvida que tinha sido um dia realmente cheio.
Meteu-se no Rolls blindado e, recostado
no banco de trás, ia pensando...
No dia seguinte.
Na destruição da sede do Sindicato,
na prisão do es-Primeiro-Ministro, no interrogatório de alguns detidos,
na tortura dos mais renitentes...
...um sorriso matreiro invadiu o rosto do ditador.
Pelo telefone do automóvel, ordenou a destruição imediata da
sede do Sindicato, a prisão do ex-Primeiro-Ministro
e o acelerar das torturas.
Só depois disso se encostou, de novo, satisfeito.
O seu lema sempre fora:
<<... Não guardes para amanhã, o que podes fazer hoje!>>
in "O Gaço de Barcelos ao Poder" de João Viegas
ALENTEJO
Folheia-se o caderno e eis o sul
E o sul é a palavra. E a palavra
Desdobra-se
No espaço com suas letras de
Solstício e de solfejo
Além de ti
Além do Tejo
Verás o rio e talvez o azul
Não o de Mallarmé: soma de branco e de vazio
Mas aquela grande linha onde o abstracto
Começa lentamente a ser o
Sul
Outro é o tempo
Outra a medida
Tão grande a página
Tão curta a escrita
Entre o achigã e a perdiz
Entre chaparro e choupo
Tanto país
E tão pouco
Solidão é companheira
E de senhor são seus modos
Rei do céu de todos
E de chão nenhum
À sombra de uma azinheira
Há sempre sombra para mais um
Na brancura da cal o traço azul
Alentejo é a última utopia
Todas as aves partem para o sul
Todas as aves: como a poesia
Manuel Alegre (Alentejo e ninguém)
João de Deus (1830-1896)
O DINHEIRO
O Dinheiro O dinheiro é tão bonito,
Tão bonito, o maganão!
Tem tanta graça, o maldito,
Tem tanto chiste, o ladrão!
O falar, fala de um modo...
Todo ele, aquele todo...
E elas acham-no tão guapo!
Velhinha ou moça que veja,
Por mais esquiva que seja,
Tlim!
Papo.
E a cegueira da justiça
Como ele a tira num ai!
Sem lhe tocar com a pinça;
E só dizer-lhe: «Aí vai...»
Operação melindrosa,
Que não é lá qualquer coisa;
Catarata, tome conta!
Pois não faz mais do que isto,
Diz-me um juiz que o tem visto:
Tlim!
Pronta.
Nessas espécies de exames
Que a gente faz em rapaz,
São milagres aos enxames
O que aquele demo faz!
Sem saber nem patavina
De gramática latina,
Quer-se um rapaz dali fora?
Vai ele com tais falinhas,
Tais gaifonas, tais coisinhas...
Tlim!
Ora...
Aquela fisionomia
É lábia que o demo tem!
Mas numa secretaria
Aí é que é vê-lo bem!
Quando ele de grande gala,
Entra o ministro na sala,
Aproveita a ocasião:
«Conhece este amigo antigo?»
— Oh, meu tão antigo amigo!
(Tlim!)
Pois não!
João de Deus, in 'Campo de Flores'
Dr.
dói-me o peito
do cigarro
do bagaço
do catarro
do cansaço
dói-me o peito
do caminho
de ida e volta
do meu quarto
à oficina
sem parar
sempre a andar
sempre a dar
dói-me o peito
destes anos
tantos anos
de trabalho e combustão
dói-me o luxo
dói-me os fatos
dói-me os filhos
dói-me o carro
de quem pode
e eu a pé
sempre a pé
dói-me a esperança
dói-me a espera
pelo aumento
pela reforma
pelo transporte
pela vida e pela morte.
Dr.
já estou farto
de não ser
mais que um braço
para alugar
foi-se a força
e o meu corpo
é como o mosto pisado
como um pássaro insultado
por não poder mais voar.
Dr.
eu não sei ler
os caminhos
por dentro
dos hospitais
mas alguém há-de aprender
entre as rugas do meu rosto
o que não vem nos jornais
e não há nada no mundo
nem discurso
nem cartaz
capaz de gritar mais alto
que as palmas das minhas mãos
que o meu sorriso sem jeito,
Dr.
Dói-me o peito…
José Fanha
Eu sou Português aqui, ed. Ulmeiro
Emanuel Félix Borges da Silva nasceu em Angra do Heroísmo a 24 de Outubro de 1936 e faleceu no dia 14 de Fevereiro de 2004 na mesma cidade. Poeta, ensaísta, autor de contos e crónicas, crítico literário e de artes plásticas. Foi considerado o introdutor do concretismo poético em Portugal, que cedo rejeitou, tendo passado pela experiência surrealista.
POEMA PARA O GATO GASPAR
Nem só de carapaus vivem os gatos
mas também de silêncio
mas de ouvidos e patas
e de gatas que é mesmo a posição
em qestão
e em que estão
os outros animais ditos i-
-racionais
Gaspar, my friendly ghost
come a tua ração
come o teu pão quer dizer carapau
quotidiano
com esse teu motor interior
a trabalhar em direcção à fuga
no preciso momento
Todavia não deixes de espreitar
o aquário com peixes verdes dentro
que o alimento
vem também do sonhar
Nem só de carapaus, may friendly ghost
bicho manhoso
a quem chamo Gaspar
EMANUEL FÉLIX
in, "121 POEMAS ESCOLHIDOS"
EDIÇÕES SALAMANDRA, COL GARAJAU, 2003
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